Governança corporativa, valores, sombra e transformação

Artigo de Análises & Tendências explora a importância de reconhecer defeitos para encontrar soluções 

  • 13/01/2020
  • Autor Convidado
  • Artigo

Vivemos uma época de expectativas e sínteses expostas em imagens.

Os textos, em especial aqueles capazes de cobrir reflexões que abarcam a complexidade das perspectivas, tendem a ser considerados longos para os padrões atuais.

O desejo do “curto” — frequentemente superficial — que deriva, com suas vantagens e desvantagens, da cultura do pragmatismo comportamentalista globalmente instalado nas últimas seis décadas, nos força a um objetivismo de resultados que, monetizando as metas, impõe crise às relações.

Pelo bem, pelo mal, somos mais produtivos objetivamente, mais velozes, mais enredados socialmente, mais globais, enquanto subjetivamente somos mais ansiosos e rasos, mais solitários, voláteis e inseguros, colocando o medo, a inveja, o ciúme, a raiva como senhores da nossa assustadora escuridão.

A luz é o ideal iluminista; a sombra é o efeito; os corpos somos nós, humanos imperfeitos, com essa frágil lamparina que chamamos de consciência, via palavras, tentando conviver. Enfim, chamemos sombra o efeito de um corpo face à luz.

O corpo obstrui a luz, que o contorna como pode, cria a penumbra ao seu redor, o cinza claro tende ao negro. Em volta, a claridade, mesmo pouca, torna óbvia a tentativa de se esconder o inocultável. Não fossem eventuais compreensões bem-humoradas, via ironia, toda ocultação seria ofensiva. Em caso extremo a humilhação se torna susto, e a consciência do exagero apavora os mais sensatos. Sim! Negar a sombra é uma forma de ocultá-la, e ocultá-la é uma maneira de agredir a lucidez, a ponto de doer a inteligência. Daí o esforço de filósofos, psicólogos, antropólogos e humanistas em geral para alertar: cuidado com o intuito de ocultar o inocultável, ação que só o evidencia e destrói a confiança, numa recusa de se aprimorar a “sombria humanidade luminosa” dos humanos, sem exceção. Negar defeitos é fugir da solução. Assim adentremos na penumbra, essa antessala da cegueira, que fará com que vejamos. Comecemos acostumando os olhos.

O que se vê são apenas vultos. Eles se movem com argumentos bem audíveis — quanto mais escuro mais se grita —, suas citações são defensivas, frequentemente mentirosas, o individualismo oportunista é recoberto com as lantejoulas da virtude e, como as fantasias se pretendem verdadeiras, não se pode supor um carnaval. Três fenômenos de época são correlatos a tal fato: a “desintelectualização”, a desvinculação e a monetização.

Cada vez mais impulsivos, menos capazes de pensar e dialogar para escolher, passamos a pensar o pensamento como trava, e não como bênção. Tornamos curtos o planejar e o refletir, a consideração das consequências. A ilusão da rapidez nos fez reféns. O preconceito com o intelecto — tomado como atraso dessa urgência patológica — nos tornou superficiais. A sombra adora quem só enxerga a superfície, e não a vê.

Ao mesmo tempo, progressivamente nos desvinculamos uns dos outros. Foi interpondo mediadores que mais e mais nos afastamos como íntimos. As ferramentas interpostas se imiscuíram entre nós de tal maneira que, sem elas, temos dificuldade em saber “de quem se trata”. Somos imagens bidimensionais que pronunciam sons midiáticos semelhantes à voz de cada um que ainda temos nas memórias. Um dia esqueceremos até as vozes.

Fechando a tríade, a monetização, essa sombra onipresente e inocultável de praticamente todos os propósitos. Em suma, ao que parece, o resultado do pragmatismo de eficácia definiu a sua eficiência em “menos pensamentos” (“o pragmatismo garante a ação desavisada, e a admira”), menos “outros ao redor” (“a rede interposta garante essa distância controlada”) e “mais mensuração contabilista” (“está muito bonito, mas como faremos mais dinheiro com essa ideia?” é a pergunta permanente).

Nesse cenário falsamente luminoso, ver a sombra? Nem pensar!

Para garantir a escuridão, gritemos “luz!”, esperando que os inocentes e os ingênuos acreditem na ilusão. 

Mas há uma boa notícia. Não é somente com inocentes e com ingênuos que, reféns do infantilismo irresponsável — quando não da covardia — avançamos com a cultura. 

Expor a sombra com a intenção de incorporá-la para poder minimizar seus malefícios é essencial, e é possível. Toda sombra tem um aspecto brutal e assustador. Algumas mais, algumas menos, daí que olhar a sombra envolve coragem. Todo olhar que se dispõe à escuridão enxerga mais com menos luz. É preciso trazer temas brutais à superfície para poder neutralizá-los e avançar no que já impedem. Aqui há um remédio curador. É preciso trazer temas brutais de maneira elegante e delicada, eis a arte da política na mais positiva das vertentes. É preciso ter coragem para olhar o que é obscuro, o caminho é via penumbra. É preciso compreensão inteligente das imperfeições inevitáveis, sem cair no compadrismo moralmente destrutivo. É preciso habilidade pessoal para a abordagem, sem acirrar o narcisismo defensivo, o cinismo chantagista e a malandragem oportunista. Tudo isso no silêncio que suporta essas palavras.

O processo de lidar com as sombras se inicia por buscá-las. Não buscá-las com o ódio delator que torna juiz opressor quem deveria ser parceiro orientador. Por irônico que seja, aqui há um segredo escancarado: entre admitir os seus defeitos e defender a sua estrutura, todo ego, se agredido além de um ponto, escolhe proteger-se em vez de transformar-se.

Humanos são indivíduos coletivos. Em meio aos históricos dilemas e conflitos que acompanham a nossa natureza — eu-outro, razãoemoção, dependência-autonomia, fé-desconfiança, ética-prática, desejo-dever, entre muitos outros — somos indivíduos, porém coletivos, e somos coletivos, porém indivíduos. É justo nas tensões contidas nessa sociodinâmica de concessões (ao coletivo) e nas exigências (individuais) que reside toda a nossa educação social e, portanto, nosso desenvolvimento moral. Vigiar as sombras íntimas, já difícil, é tarefa individual; lidar com as sombras públicas é tarefa coletiva — por isso, de governo, de governança. É nesse ponto que a Psicologia, a Antropologia e a Filosofia Moral — aqui tomadas como “a reflexão sobre as melhores maneiras de se viver e conviver”, levando a um contrato sustentável — podem aliar-se à Sociologia Política e ao Direito para dar imensas contribuições às governanças, se dispondo a psicanalisar as sombras, expondo-as com a delicadeza necessária (mas nem sempre suficiente) para que se anime a transformar-se. Oprimir é tentador, e funciona de imediato, mas pouco ajuda a médio prazo, na medida em que o opressor é refém de quem oprime. Basta que afaste o seu chicote e tudo volta à velha forma.

Defendida a delicadeza com a energia da coragem, e alertados os dilemas, acrescentemos um quarteto ancestral, uma obviedade tão esquecida quanto útil, e imprescindível: a face, a fala, o afeto e o ato.

Quanto mais esses elementos são alinhados, maior é a confiança estruturada no convívio, e melhor é o ambiente como capaz de evoluir. Estar na face o que se fala, com afeto positivo, e sempre agir segundo a dito, é a condição ideal do mestre. Antes de tudo, um construtor de confiança. Por outro lado, cindir a face à fala, apartar a voz e o ato, gelar o afeto, fingir calor com a face fria e o peito seco desorienta os coletivos — justo o intuito do manipulador oportunista, semeador de decadências coletivas para proveito apenas próprio. Ele porta uma lanterna, que ligada emite sombra, escurecendo ao projetar-se. Ele cega com as palavras, fingindo afeto onde há frieza.

Governança, antes de tudo é Educação. Pode ser reeducação, detecção, eleição de objetivos, transformação cultural de coletivos. Sem a luz dos propósitos sinceros e a vigilância sobre as sombras que os impedem toda política fracassa, as mudanças não acontecem, os coletivos deterioram. Os humanos são espertos. Eles buscam seus socorros onde mais percebem havê-los. Onde fracassam os governos, os líderes privados capazes de consciência social, os empreendedores éticos, são chamados a aprimorar os coletivos. Pois que, na melhor hipótese, o privado ajude o público, sem por ele corromper-se. Para isso, a luz e a sombra nos convidam a um encontro na penumbra. E que ele seja hábil para, sábio, conduzir o que virá.


Este artigo é parte da 6ª edição da revista Análises & Tendências, com foco em cultura ética.

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Sobre o autor

Graduado e pós-graduado em Psicologia e Administração, fundador da Ethos SHN (Seres Humanos de Negócios), psicólogo do Desenvolvimento voltado à construção da cultura transdisciplinar contemporânea em suas vertentes educacionais e empresariais. Consultor em Desenvolvimento Humano e Organizacional focado em sucessões familiares e modelagem de negócios, membro de diversos institutos e conselhos de administração, conferencista e autor.

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do IBGC.