Nos dias 17 e 18 de outubro, o 24º Congresso IBGC traz como tema principal Governança em rede: Conectando stakeholders. Esse olhar estratégico para todas as partes interessadas se torna cada dia mais essencial, e por isso, o Blog IBGC conversou com Aline Gonçalves Videira de Souza, sócia de inovação, negócios de impacto e ESG no SBSA Advogados, e doutoranda em Administração Pública e Governo na EAESP/FGV.
Com ampla bagagem no tema, Aline integra o board da GAIL (Global Alliance of Impact Lawyers), comunidade internacional de profissionais da advocacia que atuam por um novo paradigma econômico, balizado por uma estrutura legal que considere todos os stakeholders. A especialista também coordena o projeto “Contratos Justos na Amazônia”, que busca aprimorar as relações contratuais entre empresas, investidores e comunidades locais, visando diminuir as assimetrias comerciais na região. Confira o bate-papo:
Blog IBGC: Em primeiro lugar, o que é governança de stakeholders? Podemos dizer que esse é um conceito ainda em construção?
Aline Gonçalves Videira de Souza: A governança de stakeholders se ocupa de considerar os diversos grupos que têm interesse ou são impactados pelas ações de uma determinada instituição, seja uma empresa ou organização da sociedade civil. Essas partes interessadas, também conhecidas como stakeholders, podem incluir acionistas, funcionários, clientes, fornecedores, comunidade local, reguladores, grupos de defesa do meio ambiente, entre outros.
Trata-se de uma noção diferente da noção tradicional de governança corporativa, que é centrada nos shareholders ou stockholders e que, historicamente, se concentra nos interesses dos acionistas. Na governança de stakeholders, outros interesses passam então a ser considerados, para além desse foco nos acionistas.
Acredito que esse é um conceito em evolução: já passou da etapa de construção e possui bases sólidas na literatura especializada. O que estamos vivenciando é a experimentação de modelos que se diferenciam em alguns aspectos, mas que compartilham da mesma visão central da governança de stakeholders que mencionei.
Pode detalhar um pouco mais sobre essa experimentação que tem acontecido nas organizações, relacionadas a esses modelos de governança que integram os stakeholders?
Entendo que os níveis de engajamento junto aos stakeholders variam muito, mas para uma explicação mais didática, penso que podemos dividi-los em três. O primeiro nível é baseado na criação de canais de escuta e transparência. O objetivo aqui é oferecer informações aos diversos stakeholders e criar instâncias para a escuta, como pesquisas de satisfação, canais de sugestões/denúncias e eventos de interação como palestras e seminários.
Geralmente, em uma estrutura assim, não é criada uma expectativa de incorporar as demandas trazidas pelas partes interessadas, nem de justificar o que não é acolhido. Na minha experiência, esse é um tipo de abordagem que dificilmente cria um ambiente de alto nível de engajamento – e como consequência, a instituição não consegue perceber os riscos do impacto de suas ações junto a esses grupos.
O segundo nível é baseado na concepção de instâncias consultivas para avaliação de impacto. Nesse formato, a percepção do valor da visão das partes interessadas é aumentada. Isso porque, em geral, são criadas estruturas formais no desenho de governança, como é o caso de conselhos, comitês, grupos de trabalhos e fóruns permanentes de discussão de natureza consultiva. Nesses contextos, é comum então que as partes interessadas sejam chamadas a participar de processos de avaliação do impacto gerado por aquela instituição.
Já o terceiro, mais raro, é a participação nas decisões. Em geral, ocorre por meio de um processo de inclusão de representantes das partes interessadas em processos de tomada de decisão, por meio de assentos em conselhos deliberativos, por exemplo. Há sofisticações desse formato quando o propósito da empresa é ajustado – e ela passa a se comprometer a gerar retorno financeiro e ao mesmo tempo impacto socioambiental positivo em atenção aos stakeholders.
Nesse último caso, ao invés de “governança de stakeholders”, teríamos uma “governança por stakeholders ou para stakeholders”. Assim, o debate não é mais sobre quem senta em qual cadeira para tomar a decisão: o que importa é qual é a decisão que se alinha aos compromissos societários estabelecidos naquela instituição, que escolheu ter uma governança voltada aos stakeholders.
Na sua perspectiva, quais são alguns dos caminhos para potencializar essas conexões com as partes interessadas?
Eu gosto sempre de lembrar que stakeholders não são uma unidade coesa, livre de conflitos e isenta de contradições. É preciso aperfeiçoar uma visão crítica sobre isso, para que não se caia numa ilusão de que a mera criação de canais de participação vai garantir um efetivo e saudável engajamento.
Na estruturação de desenhos de governança, um fator essencial é a gestão de riscos e conformidade. Por isso, avalio que é necessário mapear quais são os riscos associados às partes interessadas e, então, estabelecer estratégias para lidar com os diferentes perfis que são impactados. Para algumas interações, como aquelas com comunidades atingidas por construção de empreendimentos, é relevante buscar suporte especializado que saiba trabalhar com metodologias inclusivas e que conheça as peculiaridades locais.
Como os agentes de governança podem incorporar esse olhar estratégico para os stakeholders em sua atuação no dia a dia?
É preciso, inicialmente, compreender os benefícios desse tipo de governança. Estamos cheios de exemplos de como a falta dela afeta a gestão de riscos, inibe a inovação e atrasa o alinhamento com a agenda ESG.
Outra dimensão que considero importante é a jurídica. De que adianta criarmos diversas estratégias de engajamento se, no final do dia, elas não vincularem juridicamente quem toma decisões? Para lidar com isso, há algumas sugestões de natureza societária e contratual. Um exemplo é o alinhamento com qualificações jurídicas, como é o caso das benefit corporations, legislação que já existe há mais de uma década nos EUA e aprovada em diversos outros países. No Brasil, há um interessante projeto de lei que propõe a criação da qualificação jurídica voluntária das sociedades de benefícios.
Outra possibilidade é a inclusão de cláusulas ancoradas no triple bottom line (tripé da sustentabilidade), ou ainda as cláusulas do sistema B, que vinculam o objeto social da empresa para a geração de impacto positivo, e que criam regras de responsabilização das pessoas que possuem o dever fiduciário. Outros arranjos ainda são baseados no stewardship, em que há um debate sobre o direito ao voto das ações e o direito econômico sobre elas.
Por fim, vale não perder de vista que, quando falamos de interação com comunidades, organizações da sociedade civil podem ser grandes aliadas. São décadas de experiência em espaços de participação locais que podem contribuir com estratégias e metodologias de engajamento.