Inteligência artificial nos conselhos: o próximo passo da governança corporativa?

Série de artigos do GT Conselho do Futuro debate temas que contribuem para a efetividade dos boards

  • 15/09/2020
  • João Lencioni
  • Comissão debate

À primeira vista, a ideia de usar inteligência artificial (IA) em conselhos de administração pode parecer exagerada. Afinal, as decisões de conselheiros podem parecer justamente o oposto do que se imagina que possa ser automatizado. 

O olhar agudo, a sutileza e o engenho de raciocínio, a combinação de astúcia e sensibilidade construídos em décadas de árdua experiência, e que são necessários para tratar as complicadas questões com que os conselhos se confrontam, não são características reconhecidas dos sistemas de IA hoje. Mas já há algumas experiências que indicam que isso poderá mudar.

Há alguns dias,  colegas da Comissão de Inovação e do GT Conselho do Futuro do IBGC e eu, conversamos com Dmitry Kaminskiy, fundador da Deep Knowledge Ventures (DKV), uma empresa gestora de fundos de investimentos com alta tecnologia baseada em Hong Kong. Dmitry é um investidor e empreendedor serial, com negócios na área de medicina avançada, longevidade e inteligência artificial. Em 2014, a DKV apontou um software de IA como membro do seu conselho de administração com direito a voto e veto sobre decisões de investimentos. O software VITAL (Validated Investment Tool for Advancing Life Sciences) coletava e agregava de forma automática uma enorme quantidade de dados sobre 12.000 empresas de biotecnologia, simulava o processo de due diligence e, através de uma metodologia própria de análise de investimentos, indicava se a DKV deveria ou não investir em uma empresa.  Caso os conselheiros da DKV e o VITAL divergissem, o investimento não era feito até que a divergência pudesse ser resolvida com mais dados e análises.

Dmitry admite que a indicação do VITAL ao conselho foi também uma jogada de marketing, principalmente para uma empresa que investe em DeepTech – startups baseadas em saltos científicos relevantes e alta engenharia. Em 2014, a combinação de rastreadores da Internet, das técnicas de agregação e visualização de dados e dos mecanismos de decisão empregados pela DKV era bastante avançada na criação da inteligência de mercado que guiava as decisões de investimento. Ao longo dos últimos anos, porém, muitas dessas soluções se transformaram em ferramentas disponíveis no mercado.

Mas a ousadia de 2014 rendeu avanços importantes à DKV. Os dados e as formas de visualização que o VITAL possibilitou aos executivos e conselheiros da DKV permitiram à empresa perceber oportunidades únicas e criar reais vantagens competitivas. Dentre elas, a detecção precoce de sinais de excepcionalidade em startups na área de biotecnologia – verdadeiras agulhas no palheiro – que só seriam descobertas por outros investidores anos mais tarde. Além disso, a experiência com o VITAL criou um entendimento fundamental sobre o que IA pode e não pode fazer e desenvolveu competências-chave para que a DKV operasse como um fundo inovador, influenciando profundamente sua visão de longo prazo. 

Apesar dos incríveis avanços e das previsões otimistas sobre os próximos desenvolvimentos da inteligência artificial, Dmitry não acredita que a IA irá substituir a competência e argúcia dos humanos nos conselhos de administração no futuro à vista. Considera, contudo, que a combinação da inteligência coletiva humana com a inteligência de máquina irá permitir saltos evolucionários que resultarão na ascensão das “smart corporations" – as empresas inteligentes.

Essas empresas vão alavancar sistemas de decisão usando IA para sua governança corporativa, e esse maior “QI corporativo” será um fator tão importante nos negócios, que deverá tornar obsoletas as empresas tradicionais sem inteligência ampliada. Os humanos não serão substituídos por robôs, mas as empresas desatualizadas serão substituídas pelas empresas inteligentes, acredita Dmitry.

Ele antevê também outras mudanças fundamentais na governança corporativa. Na contabilidade e auditoria, por exemplo, em vez de analistas que se debruçam sobre números para produzir os relatórios contábeis e financeiros das empresas, sujeitos a erros humanos involuntários ou não, como várias fraudes atestaram, a IA irá democratizar de forma significativa as análises financeiras e a contabilidade das empresas e trazer uma transparência sem precedentes ao mundo dos negócios. O acesso a dados reais, sem manipulações, e possivelmente instantâneos, sobre a situação das empresas vai incentivar o comportamento mais honesto dos executivos e melhorar a eficiência dos mercados de capital no mundo todo.

Acionistas e investidores vão usar IA para fazer com que as empresas trabalhem melhor, com análises em tempo real e relatórios muito mais frequentes em vez dos típicos fechamentos trimestrais ou anuais. Isso vai permitir a correção de falhas e a melhoria antecipada de eficiência. A contabilidade das empresas será interpretada pela IA, que irá analisar os dados, descobrir inconsistências e levantar alertas de forma muito mais rápida e eficiente do que qualquer auditoria tradicional tem a capacidade de fazer hoje. “As auditorias se transformarão em empresas de tecnologia, e empresas e investidores se basearão em modelos preditivos de sucesso ou insucesso baseados em dados objetivos e sem vieses contábeis artificialmente introduzidos”, prevê Dmitry.

O futuro dos conselhos, resume Dmitry, não é a inteligência artificial, mas a inteligência estendida: uma combinação de várias ferramentas e tecnologias de big data, aprendizado de máquina, visualizações avançadas de dados com realidade virtual e realidade aumentada, e a aplicação de blockchain para registro confiável e transparente de dados. Esse arsenal, associado à experiência e ao conhecimento dos executivos e conselheiros, permitirá de fato um mergulho virtual nas informações e o desenvolvimento de novas perspectivas nos negócios. 

Apesar de a evolução continuar, o interessante é que essas tecnologias todas já existem. Basta uma melhor integração das soluções e o empacotamento dessas experiências para consumo da alta gestão e dos conselhos, além de alguns avanços no regramento legal e nas práticas de negócios. 

Conselhos e gestores com as competências e os modelos mentais certos terão uma vantagem real ao descobrir como alavancar essas novas oportunidades. Os líderes corajosos vão reconhecer que, apesar dos seus anos de experiência, a IA vai sim fazer parte dos conselhos das empresas, em breve.


Este artigo é de autoria de João Lencioni, participante do grupo de trabalho (GT) Conselho do futuro do IBGC. Seu conteúdo é de responsabilidade das autores e não reflete, necessariamente, a opinião do instituto.